Na última matéria redigida com este tema, parte inicial, trouxe aos amados leitores o artigo “Violência Doméstica – quando o perigo mora em casa”, que traz uma série de informações conceituais, estatísticas, bíblicas e a forma de denúncia. Aquela é a primeira parte; se você ainda não viu, vale conferi-la primeiro, neste link: http://www.ipjc.com.br/violencia-domestica-quando-o-perigo-mora-em-casa/.
Pois bem.
Para finalizar esta série, deixo aos amados irmãos um relato da minha época de advogada em minha cidade – que muito me marcou. O ano era 2017.
Eu tinha que estar mais cedo no escritório, não lembro necessariamente a causa – se era atendimento ou preparação para audiência; mas por alguma razão, especificamente aquele dia, eu perdi a hora. Acordei com o meu celular tocando às 9h20 da manhã.
_Dra. Tatiane? Por favor, você está aí?
Eu conhecia bem aquela voz chorosa e desesperada. Em um pulo já estava de pé, com o celular no ouvido e me arrumando para o trabalho.
_Oi, Irene¹. A paz do Senhor. Está tudo bem?
_Estou na Delegacia.
_O que aconteceu, filha?
_O João² apareceu e tentou invadir minha casa.
_Aguenta firme que estou a caminho.
“Mas ele só tentou invadir a casa dela”, alguém pode pensar. No entanto, aquilo significava muita coisa. O suficiente para deixar minha cliente, a irmã Irene, uma abençoada serva do Senhor, desesperada. Ela serve a Deus em outro ministério e me conheceu por indicação de um presbítero nosso. Naquele tempo, ante a gravidade da situação, já havia conseguido uma Medida Protetiva de Urgência em favor de Irene – e João já havia sido intimado da ordem de distância que deveria obedecer. Mas não; bastou um momento de surto para ele se dirigir a casa dela e ameaçar invadir. O pavor era tanto que o simples fato de ver seus olhos na fresta da porta arrebatou a pobre irmã de pavor. Mesmo desesperada, teve forças de chamar a polícia – que não tardou a aparecer e conduziu-os à Depol[3].
Por volta das 10hs da manhã eu cheguei ao local. Irene estava sentada, atordoada, apavorada, enquanto o Delegado terminava a oitiva de João lá dentro. O desequilíbrio daquele homem era tão perceptível que ele, algemado, tentava resistir aos policiais e gritava o nome de Irene pelos corredores. Cada grito era como um choque na irmã. O deferimento daquela Medida em seu favor não era em vão; permitam-me um parêntese neste momento para contar a história de Irene. Irene aposentou-se relativamente nova, pois trabalhou desde cedo. Do cargo que ocupava, conseguiu uma aposentadoria consideravelmente boa – que lhe permitiria bons dias de descanso e tranquilidade. Porém, conheceu João – que ao perceber que se tratava de uma
¹ Nome original substituído para preservação da identidade.
² Nome original substituído para preservação da identidade.
³ Delegacia de polícia.
aposentada com boas condições, logo foi para a Igreja dela, batizou-se e se casaram. Infelizmente, João jamais se converteu a Deus; ele só queria o dinheiro dela. Viu só, irmãs, a importância de buscar direção de Deus para o casamento? Estar na Igreja nem sempre significa estar em Cristo, infelizmente.
Desta união, Irene sofreu as piores barbáries possíveis. As piores. Ele saiu da Igreja, não trabalhava, vivia constantemente bêbado e gastava o dinheiro da esposa com outras mulheres e vícios. Como se ainda fosse pouco, chegava da rua e cometia as piores atrocidades possíveis com a esposa dentro de casa, das quais não só lhe violavam a integridade física, mas destruíam completamente sua vida espiritual e saúde mental. Ela já não conseguia ficar sozinha e vivia constantemente aterrorizada, com os olhos fundos e vermelhos de tanto chorar.
Eu entrei com Irene para a sala do escrivão, protegendo-a de João, que estava algemado no corredor em que iríamos passar – e gritando. A pobrezinha não suportava aquela voz, estava desesperada. Irene prestou depoimento em minha companhia. Após a manhã toda lá, eu finalmente consegui conversar com o Delegado. Um dos momentos mais horríveis da minha carreira, que nunca vou me esquecer.
O chefe de polícia era um homem baixo, prepotente e arrogante. Cheguei até ele, me apresentei como advogada da vítima e perguntei se João seria preso.
_Preso? Eu vou liberá-lo, Dra.
_Liberar, Dr., é sério? Olhe o estado deste homem. Visivelmente desequilibrado, gritando, resistindo aos policiais. Olhe para a vítima, está desesperada. Se o senhor liberá-lo, ele vai matá-la hoje ainda!
_Aí a Dra. retorna aqui que eu prendo.
_Sr. Delegado, o senhor realmente vai permitir este ato?
_Dra., o que ele fez? Ele tentou invadir a casa dela, nem conseguiu porque os policiais chegaram. Este crime é punível com detenção, de um a três meses – ou multa.
_Dr., mas ele descumpriu Medida Protetiva!
_E a Dra. quer que eu o prenda por descumprimento de Medida Protetiva?
_Claro que eu quero! Estamos na iminência de um crime pior!
Este é um diálogo que se mantém vivo em minha mente com riqueza de detalhes, porque me marcou muito. Tentei argumentar com aquele Delegado, mas foi em vão; João estava prestes a ser formalmente liberado da Delegacia e eu precisava agir. Coloquei Irene em meu carro e disse a ela:
_Para onde vai?
_Para casa.
_Não senhora, para sua casa não dá. Se você não tiver para onde ir, vai ficar comigo em meu escritório.
_Então, vou para minha irmã. Mas antes preciso passar em casa e dar comida para os meus gatos.
Passamos lá, ela alimentou seus bichanos, separou uma quantidade de pertences pessoais e deixei-a em segurança na casa da irmã. Alertei-a para me chamar caso ocorresse qualquer coisa.
Segui para o escritório. Preparei-me para a atividade que deveria ter realizado de manhã, sentei-me ao computador e redigi uma representação contra aquele Delegado. Eu estava inconformada. Tudo aquilo era um pesadelo. Aquele homem não podia estar solto. Em outra petição, redigi todo o caso daquela manhã para o juízo em que tramitou a Medida Protetiva de Urgência e fui para o fórum.
O assessor daquela Vara Criminal havia sido meu professor de Direito Penal na faculdade, um amor de pessoa. Conversei com ele, expliquei tudo e protocolizei a petição, momento em que prontamente remetemos toda a situação ao Juiz.
O que aconteceu?
Tanto o Juiz quanto o Promotor de Justiça do caso, assim como eu, muito se indignaram com o que havia ocorrido naquela manhã. Como assim “o descumprimento” da MPU não havia significado nada para aquele Delegado? A ordem emanava do Juiz, ou seja, um verdadeiro escárnio às decisões judiciais! E João já havia sido preso anteriormente por violência doméstica! Como tal fato poderia ser ignorado? Não dava. Diferentemente daquele específico Delegado – que nem sei mais se atua em minha cidade -, o Poder Judiciário deu a devida atenção ao caso de Irene. O descumprimento à Medida Protetiva de Urgência foi prontamente convertido em mandado de prisão preventiva.
Aproveito para consignar que minha cidade possui outros Delegados bons e compromissados com a ética e a justiça; infelizmente, este não era o caso daquele que nos atendeu.
Por fim, ao final do dia, Irene me ligou. Alguém da família dela foi ver a casa. Minha suspeita não estava equivocada: João voltou no endereço assim que saiu da Delegacia. Ao encontrar a casa vazia, ele a quebrou por inteiro, causando um considerável prejuízo financeiro. Não satisfeito, ainda saiu atirando pedras nas casas dos vizinhos e quebrou uma série de janelas ao longo daquela rua. Imaginem o que ele teria feito se tivesse encontrado Irene em casa?
Após isso, João evadiu-se para a casa de familiares em outro Estado e não foi encontrado para ser preso.
No entanto, para mim, o mais importante era Irene ter paz.
Conclusão:
Como denunciar?
A “outra face da Lei Maria da Penha” é que esta luta não é tão simples quanto parece – e apresenta, por vezes, um cenário desafiador. No entanto, a omissão mata! Não se esqueça de que, conforme dados do Sinan, uma mulher é agredida a cada quatro minutos no Brasil.
Que o Senhor nos ajude a vencer este mal!
Graça e Paz!
Sua irmã em Cristo,
Tatiane Nascimento.